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O CÉU NÃO ESTÁ PARA ESTRELAS

30 de Outubro de 2024

O céu não está para estrelas

Numa noite quente de mormaço e com nenhuma estrela a vista no céu,

Tomé se preparou para o trabalho. Um dia como qualquer outro na metrópole de Belém. As luzes fortes da cidade e a queimada da floresta impedem a visão dos astros distantes. A lua brilha cheia. Tomé pega o seu café admirando-a, e dá um gole amargo. Ele precisará de energia para esta aventura na floresta Amazônica que irá realizar de barco.

Tomé foi empregado pelo IBGE, depois de ter passado um bocado de tempo desempregado. É um trabalho temporário, mas que irá pôr comida na mesa. O recenseador precisa visitar os domicílios de comunidades ribeirinhas. Tomé trajou o seu chápeu com pressa. Ele precisa sair da cidade na calada da noite para chegar com tempo de sobra.

Ele mora no bairro de Terra Firme, num juntadinho perto do Porto Amazonas, um porto de pequeno porte. Mas não é para lá onde ele irá, pois é ele mesmo que irá navegar o barco. Tomé Júnior Virgílio foi treinado a navegar pelo censo, o que não era necessário, mas o seu pai achou que ele deveria fazer por preocupação, depois de seu irmão gêmeo falecer nas águas. Seu pai, Virgílio, é pescador e botava seus filhos na mão da massa.

O seu irmão se afogou num acidente que lhe custou o outro barco da família. Virgílio não vai poder pescar enquanto seu filho navega, mas ele trará o sustento de casa dessa vez.

Tomé caminha junto com sua família, mãe, pai e irmã até o píer no rio Guaíba, onde está a gaiola de seu pai chamada Pérola do Norte. Ele embarca a gaiola, se despede de seus parentes, e dá a partida na chave de ignição. A noite está apenas começando.

Ele queria uma companhia nessa longa viagem, mas é um trabalho solo e os sanduíches de pirarucu são poucos. O pior é que se deixar lascas de pirarucu frito em cima na mesa ele as devora em segundos. Sua mãe, Bentina, dá-lhe-o chineladas sempre que ele leva peixe e massa de tapioca escondido para o seu quarto.

O céu limpou e ele pode se guiar pelas estrelas. Chegou a sua primeira comunidade ribeirinha na estrela nascente. A lua já dizia o seu adeus.

Atracou o barco no porto da aldeia. Foi avistado por uma senhorinha curiosa numa cadeira de balanço.

— O que é que cê qué aqui, rapaz?

Ele falou gaguejando e de mal jeito:

— E-eu sou recensen…– recenseador do IBGE. Quero falar com a li-liderança da comunidade.

— Óia, a Dona Martinha tá dormindo ainda. De uns tempos pra cá ela tem acordado mais de tardezinha, lá pras 10h da manhã.

E continuou a senhorinha:

— Se cê quiser bocar com ela, vai ter que esperá. Eu posso passar uma banguela pr’ati, porque açúcar eu num tenho.

Tomé balançou a cabeça dando a concordar e entrou na cabaninha da senhora.

— Vem cá, que conversa é essa de IBGE? É coisa do FUNAI, é?

— Não, senhora. — Tomé tomou um gole do seu café. — O IBGE é o censo brasileiro, para coletar dados da população.

— Que conversinha furada. Quero vê se a Dona Martinha vai aprova isso.

— Se não for aprovado, será classificado como uma área de impedimento e terei que ir para outra comunidade. — explicou Tomé.

— Mas não faça isso não, homi. Hoje vai ter um baião aqui na Vila Real. Cê com esse chápeu todas as mulhé vão pensar que tu é o boto. Vão se jogar em ti, tô dizeno.

O homem deu um gole seco e afinou os lábios com essa resposta da senhorinha.

— Dona Marta já deve estar acordada. Vou chamar ela. Só num chama ela de Marta, é só porque eu sou comadre dela. Mi espera aqui.

O homem esperou e esperou. O café puro que ele tomou estava estranhamente doce, mesmo sem a adição de açúcar. Como um sangue de diabético. Ele também comeu um daqueles sanduíches que preparou enquanto esperava a Dona. A suspeita é que a Dona ainda estava dormindo.

— Tá aqui, tive que arrancar a Dona da cama prucê.

— Qual é o seu dever aqui, menino?

— Sou recenseador do IBGE e estou aqui para coletar informações sobre a comunidade ribeirinha. Antes de começar, Dona Martinha, peço sua autorização. Garantimos que os dados são confidenciais e anônimos, e respeitamos a privacidade de todos na comunidade.

Tomé falou dessa vez, com quem importa, sem titubear e com confiança.

— Ah é, eu mi lembro da última vez 10 anos atrás. Era um moço bonito como tu. Pode sim, senhor, mas antes eu peço pra ti que vá no baião de noitinha, pra conhecê o pessoal antes…

— Mas senhora, não é necessário eu conhecer o pessoal, eu só preciso fazer umas perguntinhas e… — Dona Martinha interrompeu Tomé.

— Óia, ou vussê vai, ou vussê num vai fazer o censo, tendeu? Ou vussê num tem senso na cabeça naum?

— Tudo bem, senhora.

Tomé se sentiu desenrecorajado de permanecer ali e foi esperar no barco até as estrelas cantarem e Yara mostrar a sua beleza e gentileza da noite. Ele pôs-se a apreciar o rádio, porém intrigou-se ao notar a enigmática interferência eletromagnética que fazia a programação alternar línguas, em rápidos instantes, como um pulso estrangeiro. Na volta, ele avistou algumas folhagens cinzas, mas não secas ou murchas. O estranho foi ter visto um tronco da mesma cor. Era como se tivesse algo de errado com as cores em si.

O som de Carimbó infestou o ar com seus passos dançantes. Tomé perdeu a sua vergonha e foi para a festa local.

Todos em sua volta o fitavam como um homem misterioso que ele era. O chápeu trazia atenção, mas o fato dele não ser da Vila trazia mais.

Os homens gritavam “Óia o boto! Óia o boto-cor-de-rosa!”

Uma mulher lhe convidou para dançar, sem dizer uma palavra.

— E-eu não sei dançar carimbó! — disse Tomé envergonhado.

— Boto que não sabe pescar? Um homi bonito desses que não tem gingado é um desperdício… Vem, só copia os meus movimentos.

Tomé e Tainá dançaram. Ele dançou de seu jeito desajeitado, enquanto ela dançava descontraída.

Começa a trovejar, tanto Tomé quanto o céu. Estrondos de trovões bradam a noite sem nuvens, sem chuva, mas que trovejava como as palavras incabidas que deixaram a mulher toda-toda, quente como a noitada de batuques de pés bailantes. Um trovão fortíssimo interrompeu a dança por segundos e deixou a natureza quieta, mas logo a azáfama dos humanos começou novamente. Os animais partiram quietos. Não é como se desse de ouvir o canto das aves noturnas ou das cigarras alentas por de trás do barulho do mucuvuco que os instrumentos e passos causavam. O clima estava quente, normal; mas estranhamente seco para um pedacinho da floresta amazônica. Para os nativos catequizados da comunidade, era Tupã quem estava trovejando, mas como não havia relâmpagos, a voz dele ao ser ouvida não era temida por eles; já para os tementes de lendas da aldeia, se passava do rugido do Mapinguari, com sua enorme boca no seu bojo hirsuto, uma vocalização do bocudo monstro poderia explicar os trovões sem relâmpagos. No caso peculiar da secura do ar, foi percebido pelos moradores pela presença do Boitatá, irado pelas novas queimadas para abrir campo para o cultivo de cacau, que está em alta por conta do alto preço do chocolate. No imaginário do povoado, a cobra-de-fogo então se ateou em chamas e deixaria louco ou cego qualquer um que a vê-lá, para afugentar os malfeitores da floresta, sua labareda ressequindo toda a mata em volta.

Cansados de dançar e com calor de tanto suarem, Tomé e Tainá foram até o Rio Amazonas para resolverem a sequidão, de suas bocas, e se beijarem na margem do rio.

— O rico está seco! Todo seco! Nem é época de estiagem, como irei navegar assim?!

— Como pode isso acontecer do nada? Vamos voltar e avisar o pessoal da vila!

Os dois voltam a vila desesperados e evaporados com a situação. A música parou de tocar com o tumulto dos dois, e de repente, a lua cheia se desaparece e as estrelas todinhas caem do céu. Na escuridão da noite, a natureza sussura seus segredos mais íntimos.

O canto triste do Mãe da Lua, o Urutau alertava os moradores, e o gorjeio do Uirapuru atraiu todas as feras para a redondeza do vilajeiro, onças, tamanduás, sucuris, antas e macacos todos hipnotizados pelo canto. Todos em uma paz harmoniosa. Já o povoado estava assustado.

O gerador de energia falhou, e apenas o fogo de alguns lampiões iluminava o vilareijo.

Havia corpos no chão.

— Mas o que aconteceu aqui?! — gritou Tainá.

— Eles caíram do nada, e quando fui checar se estavam desmaiados, não tinham circulação.

— Meu Deus…

O pequeno rádio à pilha que ficava constantemente ligado era o único vínculo daquela comunidade isolada com o mundo exterior. Mesmo emitindo apenas um ruído estático irritante na maior parte do tempo, eles mantinham a esperança de captar eventuais transmissões com notícias ou avisos importantes. Estavam habituados àquele chiado constante, mas naquele exato momento de caos, quando mais necessitavam de orientações, todos prestavam atenção ao radinho com expectativa. Repentinamente, houve uma transmissão, alternando a fala entre vários idiomas. Todos prestaram atenção nos idiomas incompreensíveis por eles, até ouvirem uma voz em português.

“Houve um erro na simulação. Aguarde o reinício.” A frase se repetiu três vezes, até que foi trocado de idioma.

Objetos balançavam em frenesi e desapareciam de vista, zipt. A floresta toda respirava freneticamente e o vento soprava. O rádio em si acabara por sumir completamente. Da não-renderização de cores, os objetos modelados eram levados para um vácuo.

Todos ficaram confusos com o que estava acontecendo. Ninguém sabia o que simulação significava, ou o que seria o reinício. Houve desespero e caos.

Mais e mais pessoas caíram ao chão. Tainá caiu nos braços de Tomé. Ela estava sem batimento cardíacos. Houve tristeza e choro.

A lua apareceu no céu algumas vezes, piscando intermitente e aparecendo de tamanhos menores ou maiores. Os pássaros cantavam sons de outras dimensões e os animais ferozes atacaram a população. Houve carniça e caos.

Dona Martinha se defendia com uma peixeira e gritou perguntando o que fizeram com o curupira para ele se enfuriar tanto assim. Uma onça-pintada rugiu e partiu para cima dela, abocanhando o seu pesçoco e arrancando em partes. Uma harpia pousou em seu rosto e arrancou um de seus olhos.

Tomé, aterrorizado pela cena, fugiu correndo para o seu barco.

Lá, ficou em posição fetal, pedindo a Deus por clemência. No desespero, ele se ajoelhou e orou olhando para cima, e o céu não estava para estrelas. Ele viu a lua se explodindo em milhões de pedaços, e de repente havia milhares de estrelas no céu. Estrelas cadentes. O mundo estava cinza e o único brilho era das estrelas. Ninguém vai te salvar, ele pensou.

Os asteroides entraram em colisão com a terra. Todos morreram. Todos da Terra morreram. Até os astronautas que estavam na estação espacial, que ouviram a seguinte mensagem:

“O reinício da simulação para uma versão anterior está quase completa. Aguarde um instante, por favor.”.

Houve luz e a balança cósmica estava em ordem novamente.

Numa noite quente de mormaço e com nenhuma estrela no céu, Tomé se preparou para o trabalho. Um dia como qualquer outro na metrópole de Belém. As luzes fortes da cidade e a queimada da floresta impedem a visão dos astros distantes. A lua brilha cheia. Tomé pega o seu café admirando-a, e dá um gole amargo. Ele precisará de energia para esta aventura na floresta Amazônica que irá realizar de barco.

FIM